Há eventos que passam conhecimentos técnicos de suma importância para a formação profissional. Há outros que passam conhecimentos que vão além do aspecto técnico e tocam a plateia de forma muito singular. Um exemplo é o VI Congresso Iberoamericano de Implantes Cocleares e Ciências Afins – Gicca 2015, que acontece no Centro de Convenções Rebouças, de 20 a 23 de maio, e é promovido pelo Centro de Implantes Cocleares do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Trata-se de um evento em que foi demonstrada a importância de coisas simples da vida, como o som do cotidiano.
Diferentemente de eventos que reúnem pessoas sérias, concentradas e, na maioria das vezes, profissionais já formados e estudantes interessados, neste, além desses, reuniu pacientes atendidos pelo HC, crianças e familiares envolvidos no tema “surdez e implantes cocleares”.
O implante coclear é uma prótese eletrônica colocada na estrutura coclear do ouvido (órgão responsável pela audição) que capta os sons externos e os transforma em sinal elétrico que é interpretado pelo cérebro como estimulo sonoro.
A jovem publicitária Lak Lobato tem implante coclear e já lançou o livro “Desculpe, não ouvi”. Ela apresentou seu depoimento sobre como ficou surda e como o implante mudou sua vida, passando de surda oralizada para ouvinte novamente. Foi um momento singular do Congresso!!
“Um certo dia, aos 10 anos de idade, acordei mergulhada em um silêncio surpreendente. Nenhum barulho, nenhum som, chamei minha mãe, não ouvi minha voz e nem a resposta dela. Não ouvia a obra no terreno da frente da minha janela. Estranhei que não estavam trabalhando na obra naquela manhã. Fui até a janela ver e sim, eles estavam trabalhando normalmente, mas eu não ouvia nada, havia acordado surda e, mesmo 20 anos depois, não havia um diagnóstico conclusivo do que ocorreu: fiquei surda dos dois ouvidos por mais de 20 anos.
Eu me lembro que eu fiquei encantada quando ouvi o barulho da pipoca, aquele ploc, ploc, ploc estourando na panela, parecia que a pipoca ficou mais gostosa por causa do barulho. O barulho da chuva, ao ouvir o barulho do mar depois de 20 anos de silêncio foi uma grande emoção, o som da abertura da latinha de refrigerante…
Eu fiquei encantada ao descobrir que quando você passa a mão no cabelo faz barulho, quando você veste algo, faz barulho. Esfregar as mãos faz barulho e eu fiquei encantada. Cada vez que eu ouço o barulho quando esfrego as minhas mãos, eu penso imediatamente no abraço do meu pai.
Depois de 3 anos ouvindo estou deslumbrada. Sentir o prazer de escutar, é sensacional, traz uma vida sonora para a vida da gente. Após dois implantes cocleares (um em cada lado) consegui ouvir a voz do meu marido. Fiquei muito feliz, estava enfim ouvindo novamente. O implante coclear realmente funciona!”, destacou Lak Lobato.
O PAPEL DA TECNOLOGIA
A Secretária de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo, Dra. Linamara Rizzo Battistella, que também é médica especializada em reabilitação, foi convidada a prestigiar o Congresso, e destacou o papel da tecnologia para que os cidadãos tomem seus lugares como protagonistas e sejam cidadãos de direitos, com capacidade de interferir na sociedade e de mudar a história de sua comunidade. “A tecnologia equipara direitos. Nenhum país pode ser verdadeiramente justo se ele não entender a singularidade de cada um de seus cidadãos. É preciso entender o que faz a política, mas é preciso acima de tudo exigir os nossos direitos, políticos e sociais”, destacou a Secretária.
Dra. Linamara lembrou, ainda, que desde 1946, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece a saúde como um direito social, elencado na terceira geração dos direitos humanos. “Como direito universal, a saúde exige cobertura universal. Cada uma das tecnologias que chegam nos permitem afirmar, com estudos econômicos, que há uma sensível redução nos gastos com saúde, ao se multiplicar as oportunidades. Ao se multiplicarem as oportunidades de atendimento, nós estamos levando mais crianças para a sala de aula, estamos formando uma nova geração de trabalhadores que vão devolver na forma de trabalho o que o estado investiu na forma de saúde”.
Ela ressaltou que se trata de um ciclo de desenvolvimento sustentável. “Este é o modo das nações avançadas encontrarem o seu modelo de desenvolvimento. Todos, juntos, todo mundo dentro da sociedade, todo mundo participando, cada um do seu jeito, cada um com as suas necessidades, mas juntos conquistando um novo modelo de desenvolvimento, onde fraternidade e solidariedade são abraçadas pela tecnologia e são financiadas por esse estado, que arrecada e que olha para cada um dos contribuintes com respeito, com a garantia da igualdade de direitos”, enfatizou.
A Secretária acrescentou, ainda, que é o ciclo da inovação tecnológica que cria um novo mercado, que dá garantias de mais produção. “Cada um dos senhores como consumidores, estão alimentando a cadeia produtiva, uma cadeia que emprega, que recolhe salários. Portanto, é esse o mundo que nós queremos, o mundo onde as pessoas são atendidas com modernas tecnologias, e essas pessoas ao serem atendidas, estão gerando empregos, gerando desenvolvimento e elas mesmas estão se apropriando de um novo modelo de um novo mundo. Este mundo que nós estamos visualizando, e cada um de nós está tangenciando e vivendo, é o mundo do futuro. É o mundo onde a tecnologia nos aproxima, é o mundo onde a tecnologia nos faz mais eficientes. É preciso garantir que isso seja também abrangente. Não basta que a gente tenha para alguns, é preciso que todos tenham acesso. Esse é o grande desafio, que vai ao encontro da formação de recursos humanos, garantia de cobertura universal. Todos nós sabemos aquilo que é preciso, mas poucos conheceram e experimentaram para poderem escolher. Mas precocemente as crianças com surdez devem ser colocadas em uma situação de avaliação, de diagnóstico que permitam a seus responsáveis escolher o melhor caminho.”
“Nós só queremos aquilo que conhecemos. As famílias precisam conhecer as opções. Enquanto nós não difundirmos de uma maneira universal todas as oportunidades de tratamento que existem para surdez, nós não estaremos cumprindo o nosso papel. Por isso, num congresso como esse, onde participam luminárias da ciência e aqueles que se beneficiam dos avanços tecnológicos, nós vemos o horizonte da mudança, nós sentimos a oportunidade da mudança. E o Governo do Estado de São Paulo e o nosso governador Geraldo Alckmin sente muito orgulho de poder de alguma maneira participar, ajudar, apoiar e financiar iniciativas como esta”, afirmou a Secretária.
PERGUNTAS EM VÍDEOS
Na parte final do evento, alguns questionamentos de pessoas surdas gravados foram apresentados no telão para que os profissionais da mesa respondessem ou tentassem esclarecer. Um deles é uma pergunta recorrente e quem atua no segmento das pessoas com deficiência a ouve com frequência: “por que aos surdos não são dados os mesmos direitos que são assegurados a quem tem outro tipo de deficiência e por que é necessário ser surdo bilateral (e não em apenas um dos ouvidos) para ter direito a benefícios?” Outra questão comum: “por que o estado oferece o aparelho auditivo mas não oferece as pilhas?”
A Secretária de Estado, médica e professora da USP, Dra. Linamara Rizzo Battistella, esclareceu:
“Partindo do pressuposto do controle e avaliação, sob o olhar da gestão, é muito complexo você controlar o descarte e a utilização da pilha. Nós tínhamos que chegar a algum formato de política pública para o segmento dos surdos. Também sabemos que muitas pessoas abandonam o aparelho por falta de pilha ou bateria. Não existe um parâmetro único de uso dos aparelhos auditivos, nem tempo de uso igual para todas as pessoas surdas. O desgaste está relacionado ao tempo de uso, algumas pessoas usam o dia inteiro. Outras pessoas utilizam de forma intermitente e como é que se parametriza isso? Como é que você faz proposta de compra para garantir aos usuários a reposição? Se eu não sei quanto eu vou gastar, eu não sei como preparar o recurso. Esse é um aspecto, mas tem outro aspecto que precisa ser claro: a saúde é uma condição de dupla mão, eu recebo o tratamento mas eu tenho que dar a minha responsabilidade individual.
Eu posso dar um exemplo bem simples, o indivíduo que tem uma dor nas costas e tem que tomar um remédio, mas ele precisa associar ao exercício, ele precisa fazer o exercício independentemente de estar ou não dentro do hospital. É um compromisso dele para a vida toda. Isso não significa custo? Significa porque ele vai precisar de um tênis e outros itens que o permitam cumprir este compromisso, mas se a gente não tiver um ajuste perfeito entre o que é um compromisso do estado e do cidadão, inviabiliza qualquer conta, inviabiliza qualquer mecanismo de controle. Eu não estou dizendo que nós não devemos oferecer este suporte, manutenção é necessária, estou dizendo que é muito difícil para o estado garantir um controle adequado. Aquilo que a gente não pode controlar para fins de política pública, é melhor não oferecer”.
Sobre o benefício da equiparação de oportunidades para as pessoas com deficiência de forma igualitária, foi destacado que é preciso observar a funcionalidade da pessoa. Se uma pessoa tem sua funcionalidade comprometida pela deficiência auditiva ela é contemplada pelos direitos assegurados pela legislação. Porém, se a surdez unilateral não a impede de executar tarefas comuns do dia a dia, não há necessidade de condições diferenciadas para o exercício de sua cidadania.
A Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é clara ao associar a definição de deficiência à condição presente na sociedade, sendo considerada pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.
O INÍCIO
A cirurgia de implante coclear começou a ser realizada em 1.992, no HCFMUSP, com a finalidade de pesquisar a evolução de cada paciente implantado. “Observamos um resultado altamente satisfatório e quando foi assinada a portaria MS 1287, em 1.999, pelo então Ministro da Saúde, José Serra, foi ampliado o número de cirurgias que atualmente já passa de mil imantes já realizados.
Realizada em pacientes que nasceram surdos ou perderam a audição por meningite, traumas, utilização de ototóxicos, entre outras causas, no início muitos pacientes infantis foram operados. Com o passar do tempo, jovens e adultos também passaram a fazer parte do quadro de implantados no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, todos com resultados bastante positivos.